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Força Estranha na Bienal de Dança do Ceará: Uma Análise Profunda da Redefinição do Espaço Cênico
Por Redação FutCeará em 02/11/2025 12:02
A XV Bienal Internacional de Dança do Ceará, um evento que historicamente instiga debates e experimentações na dança contemporânea brasileira, foi palco de uma apresentação singular em 29 de outubro, no Teatro Dragão do Mar. "Força Estranha", uma criação de Clarice Lima em colaboração com Aline Bonamin, emergiu como um ponto focal para uma discussão mais aprofundada sobre a dimensão estética e ontológica do espaço na arte da dança.
A obra, ao ser inserida neste prestigiado circuito, propôs um deslocamento fundamental: o espaço deixou de ser uma mera moldura arquitetônica para se converter em matéria constitutiva da própria experiência estética. Não se tratou de um cenário neutro a ser preenchido, mas de um elemento ativo, moldado e remodelado pela ação dos corpos em cena.
A Redefinição do Espaço na Dança Contemporânea
Nesta performance, Clarice Lima e Aline Bonamin orquestraram uma espacialidade inerentemente instável. A fusão de som, luz e movimento operou como camadas sobrepostas, inaugurando no palco um complexo jogo de forças. A trilha sonora de Carla Boregas e a iluminação de Dimitri Lima transcenderam o papel de meros recursos técnicos; elas se configuraram como instâncias compositivas que intervieram diretamente na formação do espaço cênico.
Mais do que adornos, esses elementos atuaram como agentes perceptivos, capazes de adensar e rarefazer a experiência do público, sublinhando a dança como uma prática intrínseca de espacialização. Tal abordagem ressoa com uma vertente de pensamento que refuta a separação rígida entre corpo e ambiente, revelando na dança um espaço que não se restringe à extensão física, mas se constrói em intensidade.
É uma superfície de virtualidades que o corpo atualiza no ato de se mover. A corporeidade dançante, nesse contexto, surge como a condição de possibilidade da própria espacialidade, indicando que o corpo não está meramente contido no espaço, mas, de fato, o corpo é espaço. "Força Estranha" materializa essas concepções, sugerindo que cada gesto não se esgota em si mesmo, mas irradia rastros e reverberações que persistem vibrando mesmo após a interrupção da ação.
Corpo e Cenário: A Gênese de Uma Nova Espacialidade
Essa peculiaridade da obra aproxima-se da noção de empatia cinestésica. O espectador é atravessado por uma vivência que transcende o campo visual, convocando a percepção tátil e sensorial. Aqui, a empatia não se configura como um efeito psicológico isolado, mas como um campo partilhado de ressonâncias. O público se vê intrinsecamente implicado na instabilidade espacial, sendo afetado por uma composição coreográfica que se edifica na relação dinâmica entre corpos, sons, luzes e matérias.
A exaustão dos gestos, a repetição cadenciada dos movimentos e as suspensões prolongadas ativam no público uma resposta sensório-motora que vai muito além da simples observação. O espectador sente em sua própria corporeidade o ritmo da respiração das intérpretes, percebe a tensão muscular como se participasse do esforço e continua a experimentar o gesto, mesmo quando ele se interrompe no palco.
Empatia Cinestésica: A Imersão do Público em "Força Estranha"
"Força Estranha" encarna aquilo que impulsiona e que escapa à previsibilidade das formas. Em cena, o movimento é o impulso do encontro, uma dramaturgia de forças que pode ser interpretada à luz de uma lógica sistêmica particular. Neste sentido, a obra reforça a ideia de que a dança não se limita a ocupar um espaço preexistente, mas o produz ativamente como um campo de intensidades.
Essa dinâmica se assemelha à forma como os sistemas tecnológicos geram realidades a partir de intrincadas combinações invisíveis de dados. Contudo, apesar de sua lógica sistêmica, a força motriz central de "Força Estranha" reside no afeto, elemento capaz de sustentar a experiência coletiva e expandir o espaço em uma partilha genuína. O público, nesse contexto, co-compõe a obra à medida que o espaço respira, ganha peso e se metamorfoseia. Nesse percurso gradual, a percepção é clara: estamos todos em movimento, em uma dança contínua.
Força Estranha: Reflexões Sobre o Espaço e a Coletividade
Ao ser apresentada em Fortaleza, "Força Estranha" reinscreve no contexto da Bienal uma pergunta de importância crucial: de que maneira a dança pode ser compreendida como uma prática de espacialização? Mais do que simplesmente ocupar um palco, a obra desvela o espaço como uma potência criativa, como algo que se constrói e se transforma no próprio ato de dançar.
Trata-se, portanto, de um acontecimento que reitera a dimensão política e estética do espaço na dança contemporânea. Na Bienal do Ceará, a performance de "Força Estranha" ressoa essa questão no âmago da cidade: como reaprender a habitar o espaço após termos vivenciado sua fragilidade e sua inerente força? A obra oferece uma resposta que prescinde de palavras, manifestando-se apenas em vibrações, ressonâncias e gestos que persistem reverberando no tempo e no corpo da cidade.
A análise original desta obra foi escrita por Rosa Primo, bailarina, coreógrafa, jornalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestre em Sociologia pela UFC, com estágio doutoral na Université Paris VIII, Rosa Primo lidera o grupo de pesquisa Dança, Infância e Autismo (DIA/CNPq) e é autora do livro "A dança possível: as ligações do corpo numa cena". Sua trajetória artística, iniciada em Fortaleza e desenvolvida entre Ceará e São Paulo, abrange atuação como bailarina, atriz, crítica e gestora cultural, com destaque para pesquisas cênicas solo como "Encanta o meu jardim", "Iracema" e "Tudo passa sobre a terra", que exploram corpo, memória, questões sociais e poéticas contemporâneas.
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