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Rosemberg Cariry: 50 Anos de Cinema Cearense e a Batalha por um Audiovisual Forte

Por Redação FutCeará em 02/11/2025 07:07

O ano de 2025 marca um jubileu de ouro para o cinema cearense: meio século de dedicação do cineasta Rosemberg Cariry. Esta celebração não é apenas sobre uma trajetória individual; é o reflexo de uma vida inteira dedicada à valorização da cultura popular e à incansável batalha pelo avanço do setor audiovisual, tanto no Ceará quanto em todo o Brasil. Com um portfólio que inclui mais de uma dezena de longas-metragens e dezenas de curtas, o diretor, roteirista e filósofo compartilha insights sobre os primórdios de sua formação, os obstáculos superados e as questões que persistem, além de antecipar as comemorações de sua carreira, que contemplam a restauração de obras e uma mostra retrospectiva.

Nascido em agosto de 1953, na cidade de Farias Brito, Rosemberg atribui à atmosfera vibrante do Cariri cearense a fundação de sua jornada artística. As vivências em Crato e Juazeiro do Norte, em particular, proporcionaram uma "vivência mais intensa com os grandes da cultura", como ele próprio descreve. Dentre essas figuras icônicas, destacam-se nomes como Patativa do Assaré, Mestre Noza, dona Çiça do Barro Cru, Cego Oliveira e os Irmãos Aniceto, cujas expressões "musicais, dramáticas, espetaculares, operísticas-populares" exerceram um fascínio e uma influência profundos em sua infância.

As Raízes Culturais e o Despertar Cinematográfico

Paralelamente a essa imersão na cultura local, a paixão pelo cinema florescia. Desde os filmes projetados pelos "cinemeiros ambulantes" em Farias Brito até as exibições dos padres nas paredes da igreja, o encantamento de Cariry pela sétima arte foi crescendo. Essa base inicial foi enriquecida pelo contato com produções estrangeiras de vanguarda do início do século XX e clássicos do cinema brasileiro, como "Vidas Secas" (1963), "Mineirinho Vivo ou Morto" (1967) e "O Ébrio" (1943), que ampliaram seu repertório e visão.

Contudo, foi a obra do baiano Glauber Rocha, notadamente "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969), que se tornou um divisor de águas e um propulsor para a decisão de Cariry de seguir o caminho do cinema. Sua formação acadêmica, por sua vez, foi moldada pelos seminários franciscanos em Juazeiro e pelo Sagrada Família, no Crato, onde teve acesso a um vasto universo de literatura e história, tanto brasileira quanto mundial.

O encontro entre o que se convencionou chamar de culturas "popular" e "erudita" foi um ponto crucial para Rosemberg. Ele compreendeu as conexões intrínsecas entre essas distintas formas de expressão. "Percebi, no estudo da história e sobretudo da cultura, as permanências de muitas tradições culturais e artísticas naquilo que a gente chamava de cultura popular. Comecei a ver nisso tudo certa universalidade, o que terminou influenciando o cinema que comecei a fazer", revela o cineasta, solidificando sua abordagem autoral.

Pioneirismo e os Primeiros Passos na Produção Audiovisual

Durante a década de 1970, Cariry não se limitou à produção audiovisual; ele se engajou ativamente em movimentos culturais e políticos que agitavam o Ceará, como o Grupo de Artes Por Exemplo e o Nação Cariri. Nesses coletivos, jovens e artistas da região se uniam para criar eventos, música, literatura e outras manifestações, sempre com um viés de mobilização social e política. Foi nesse ambiente efervescente que suas primeiras incursões no audiovisual se concretizaram.

O ano de 1975 marcou sua estreia oficial na direção com o curta-metragem "A Profana Comédia", rodado em super-8, uma tecnologia mais acessível para a época. Apesar das dificuldades inerentes ao contexto político e tecnológico daquele período, Rosemberg e outros realizadores, como Jefferson de Albuquerque Jr., seu parceiro em diversas produções, persistiam na arte, dedicando-se especialmente ao registro das expressões e tradições do Cariri.

As barreiras eram significativas, como ele aponta: "Aqui não tinham escolas de cinema, não tinham equipamentos, os laboratórios (para revelação dos filmes) todos ficavam no Rio e em São Paulo. Ou seja, fazer cinema era muito caro". A viabilização dos filmes, em muitos casos, dependia de contatos com cearenses que haviam se estabelecido em outros estados, como o próprio Jefferson, Hermanno Penna e Pedro Jorge de Castro, que atuavam como pontes essenciais para a produção.

O Marco de "Caldeirão" e a Geração Empoderada

No início dos anos 1980, a produção avançou para o formato de 16 mm. Contudo, foi em 1984 e 1985, com lançamento em 1986, que Cariry realizou "Caldeirão de Santa Cruz do Deserto", o primeiro longa-metragem documental do Ceará. O filme narra o trágico massacre da comunidade liderada pelo beato José Lourenço, perpetrado pelo poder público nos anos 1930, na região do Crato. Essa obra seminal condensa o espírito e o pensamento daquela geração de cineastas.

A abordagem artística do filme reflete uma fusão de influências: "A gente tinha um pé na cultura expressa pelo povo e ao mesmo tempo bebia em fontes que iam do cinema de vanguarda soviético da década de 1920 ao Cinema Novo e o neorrealismo. Era uma mistura grande e uma busca de linguagem funcionando em coletivo", explica Cariry. "Caldeirão de Santa Cruz do Deserto" não apenas se tornou um marco incontornável da produção cearense, mas representou uma conquista crucial para a história do estado.

O impacto do filme foi imediato e transformador: "Foi um momento muito importante e decisivo porque marcou uma ruptura: o filme foi para festivais, circulou em outros países. Uma geração inteira se sentiu empoderada", avalia o diretor. A obra abriu portas e consolidou a presença do cinema cearense no cenário nacional e internacional, demonstrando a potência de narrativas locais com alcance universal.

A Luta Contínua por um Audiovisual Descentralizado

Desde o início de sua trajetória, Rosemberg Cariry não apenas se dedicou à criação artística e à celebração da cultura local, mas também se firmou como um incansável defensor do desenvolvimento descentralizado do audiovisual. "Uma coisa importante foi a compreensão da necessidade de luta para mudar as condições. A gente começou a se organizar", enfatiza o diretor, destacando a importância da mobilização coletiva.

Entre o final da década de 1970 e os anos 1980, Cariry e seus contemporâneos foram fundamentais na fundação de associações e entidades de classe. O objetivo primordial era fortalecer as demandas por uma distribuição mais equitativa de recursos, que tradicionalmente se concentravam no Sudeste do país. "A luta era sempre a mesma, equalizar a produção", resume, ressaltando a persistência dessa pauta ao longo das décadas.

Os resultados desses esforços são hoje visíveis e motivo de celebração para o cineasta: "As gerações que estão fazendo cinema ou surgindo já vão caminhar em avenidas mais largas. A gente teve esse papel de abrir pequenas veredas na caatinga, pouco a pouco alargando. Fico muito contente em ver o Brasil inteiro produzido". Essa visão de um audiovisual brasileiro mais plural e representativo é um dos maiores legados de sua militância.

Desafios Atuais: Políticas Públicas e a Regulamentação do Streaming

Ainda que o panorama atual do audiovisual brasileiro seja motivo de otimismo, Rosemberg Cariry ressalta que as batalhas continuam e novas questões emergem. No âmbito estadual, ele destaca a atuação da Ceará Audiovisual Independente (Ceavi), uma associação de produtoras locais que tem conduzido uma "campanha intensa" por políticas públicas eficazes e pela efetivação da Ceará Filmes. Esta empresa pública de desenvolvimento do setor é, segundo ele, a "semente" das primeiras mobilizações locais.

No cenário nacional, o diretor aponta a relevância da Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste (Conne), que se dedica à descentralização geográfica e à regionalização das políticas públicas. No entanto, uma nova e premente preocupação é a regulamentação dos serviços de streaming no Brasil. Cariry expressa forte crítica ao relatório do projeto de lei em discussão, que, em sua análise, favorece as grandes plataformas com benefícios como menor contribuição e maior possibilidade de dedução fiscal.

"A questão do streaming como está proposta é tirar dinheiro do povo e financiar as plataformas. É desinteressantíssimo para o cinema brasileiro, um desestímulo", avalia com rigor. Para ele, "É momento de repensar muita coisa. É preciso que se pense numa política de sustentabilidade para o audiovisual. Quando nós propusemos a Ceará Filmes, era para que ela fosse esse instrumento de criação de políticas sustentáveis", defende, clamando por um modelo que realmente fortaleça a produção nacional.

O Legado Preservado: Restauração da Filmografia

Nos últimos anos, um esforço significativo tem sido feito para preservar a obra de Rosemberg Cariry. Uma série de seus longas-metragens está sendo restaurada pelo Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS-Ceará), em uma iniciativa que conta com o apoio do próprio MIS, do Instituto Mirante, do Museu de Arte Moderna do Rio e da Iluminura Filmes. A lista de obras contempladas inclui "O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto" (1986), "Corisco & Dadá" (1996) ? que já foi relançado em circuito comercial ? e, mais recentemente, "Lua Cambará" (2002).

Os dois últimos títulos, em suas versões restauradas, foram exibidos na Mostra de Cinema de São Paulo em 2024 e neste ano, respectivamente. Além desses, "A Saga do Guerreiro Alumioso" (1993) é o próximo na fila para restauração. Cariry antecipa que, em 2026, planeja realizar uma mostra retrospectiva de sua carreira, abrangendo uma seleção de todos os seus longas e curtas-metragens, um evento que promete ser um marco para o cinema cearense.

Legenda: "Lua Cambará", protagonizado por Dira Paes, teve a versão restaurada exibida na Mostra de Cinema de São Paulo e deve entrar no catálogo da plataforma Siará+.

Foto: Divulgação.

A preservação audiovisual é uma causa de suma importância para o cineasta. Ele exemplifica com o documentário "Patativa do Assaré, Ave Poesia" (2007), que resultou da compilação de registros de diversas épocas: "Eu registrei Patativa em super-8, em 16mm, 35 mm, em betacam, de todas as formas, até a morte dele. Foi aí que eu juntei todo esse material e fiz o longa", explica. "Do Patativa do Assaré, foram preservadas quase 100 horas de material, é significativo", acrescenta, evidenciando o valor desse acervo.

Desafios e Triunfos na Salvaguarda da Memória Cinematográfica

Ciente da fragilidade dos materiais, Cariry tomou medidas proativas, distribuindo cópias, negativos e internegativos de suas obras e registros em diversas instituições no Brasil e no mundo, como a Cinemateca Brasileira, além de promover a atualização tecnológica e a digitalização dos filmes. No entanto, apesar desses esforços e de exemplos positivos, muitos outros materiais se perderam ao longo do tempo. "Tinha vários registros de romarias, de festas da cultura popular, que terminaram se degradando", lamenta, ressaltando que "Para uma pequena produtora, manter um acervo é uma coisa muito cara".

Legenda: Registro de Rosemberg Cariry (à direita) com Patativa do Assaré (à esquerda) e Dona Belinha (no centro), que compõe o documentário dirigido pelo cineasta sobre o poeta.

Foto: Jackson Bantim / Divulgação.

Mesmo para os restauros conduzidos pelo MIS, o diretor recorda a complexidade de localizar os negativos originais das produções. Ele destaca o papel crucial de Hernani Heffner, gerente da Cinemateca do MAM Rio, que há cerca de uma década conseguiu resguardar negativos de "Corisco & Dadá" e "Lua Cambará", tornando possível o trabalho de restauração. "A gente já conseguiu restaurar (os longas) com alto nível e depois serão os super-8, os 16mm, esses registros todos, na medida em que for possível, porque o MIS está fazendo isso com filmes de muitos outros realizadores do Ceará", antecipa.

Cariry celebra os frutos desse trabalho: "Obras de Pedro Jorge, Nirton Venâncio, Francis Vale, filmes da década de 20, aquele filme de Lampião do Benjamim Abrahão? Daqui a pouco nós vamos ter um significativo acervo audiovisual cearense restaurado". Ele enfatiza que essa realidade, longe de ser a regra, merece ser aplaudida. O MIS, segundo o cineasta, já se tornou um "modelo no Brasil", não apenas pela sofisticação de seus equipamentos, mas pela "dedicação" e "paixão pelo cinema" de sua equipe.

Com a digitalização, esses acervos serão distribuídos entre várias instituições, o que tornará a preservação "mais fácil, segura". "Pela primeira vez, nós vamos ter uma ideia do que se produziu no Ceará quando tivermos esse acervo todo", prevê Rosemberg Cariry, vislumbrando um futuro onde a memória cinematográfica do estado estará finalmente acessível e protegida para as próximas gerações.

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